CHAMADA FMAT2016

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Dez anos após o Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária FMRA (Valência, 2004) e a Conferência Internacional sobre a Reforma Agrária e o Desenvolvimento Rural CIRADR (Porto Alegre, 2006) e em linha com o Ano Internacional da Agricultura familiar (AIAF), nós, os signatários desta chamada, sublinhamos a necessidade de reunir diferentes atores sociais e instituições para aprofundar o debate e para melhorar o acesso dos agricultores pobres à terra, água e recursos naturais.

A situação atual – persistência da fome, o crescimento populacional, a exclusão, o desemprego em massa, a crise ambiental e a perda da soberania alimentar – assim como aquisições, arrendamentos e concessões de terras – convidam a rever a questão do acesso à terra e aos recursos produtivos. Embora os grandes projetos tenham um retorno sobre o investimento, a sua eficiência económica e, principalmente, os interesses das comunidades afetadas e das gerações vindouras estão longe de estar garantidos.

Irá a decisão de promover as empresas agrícolas baseadas na produção de um pequeno número de commodities, na forte utilização de insumos sintéticos e de combustíveis fósseis, e na utilização de trabalho assalariado resultar num aumento significativo da produção e da riqueza? Criará emprego e renda para centenas de milhões de ativos hoje excluídos e para outros tantos ou mais esperando para entrar no mercado de trabalho? Será a próxima revolução agrícola, com capacidade para alimentar 9 mil milhões de pessoas adequadamente, dar trabalho a um maior número de pessoas e erradicar a fome, baseada, como no passado, na substituição massiva do trabalho pelo capital? Como garantir que os princípios no âmbito das «diretrizes voluntárias» se traduzam, de facto, pelo respeito dos direitos das pessoas e a promoção do desenvolvimento sustentável?

Por fim, a questão dos direitos e dos «bens comuns», parece-nos dever ser reintegrada na agenda das discussões internacionais. O açambarcamento massivo dos recursos do planeta, e a diversidade das suas manifestações, reflete a sua cada vez maior mercantilização, em nome do crescimento e bem-estar global. Mas isto conduz à ignorância das dimensões históricas, sociais, ecológicas, culturais e políticas das dinâmicas em curso, e à minimização dos seus impactos. Neste contexto, parecenos necessário reengajar a questão dos direitos humanos, especificamente o direito equitativo à terra, água e demais recursos naturais e o direito de implementação de sistemas de produção mais conformes com as escolhas ecológicas, económicas, culturais e técnicas das comunidades, de acordo com o interesse global.
Convocamos as organizações da Sociedade Civil e as Instituições Governamentais a participar na mobilização para o Fórum Mundial sobre acesso à terra e recursos naturais. É necessário debater e analisar as propostas de desenvolvimento atuais e os graves problemas que delas derivam. Convocamos para a celebração do FMAT 2016 para juntos encontrarmos e implementarmos as respostas mais eficazes para os resolver.

Há muito tempo que a questão do acesso à terra é reconhecida como um passo necessário para a melhoria das condições de vida das populações rurais mais vulneráveis e para a melhoria da segurança alimentar de um número cada vez maior de pessoas. Em 1979, a Conferência Mundial sobre a Reforma Agrária e o Desenvolvimento Rural, organizada pela FAO, concluiu sobre a necessidade de distribuir terras àqueles que não têm acesso a ela e aos produtores que não têm o suficiente para viver, com dignidade, do seu trabalho. Em 1996, a Cimeira Mundial sobre Alimentação, convocada pela FAO em Roma, constatava que o problema da fome estava longe de ser resolvido e definia 2015 para reduzir, para metade, o número de pessoas que sofrem de fome, objetivo que foi reconhecido como fora do alcance seis anos depois, na ocasião de uma nova cimeira reunida sobre o assunto (2002). Em 2004, a FAO, no seu relatório sobre o estado de insegurança alimentar no Mundo, observou que a fome continua a aumentar a uma escala global.

Foi neste contexto que o Centro de Estudos Rurais e de Agricultura Internacional (CERAI) e muitas organizações da sociedade civil organizaram, em dezembro de 2004 em Valência (Espanha), o Fórum Mundial sobre a Reforma Agrária (FMRA), que reuniu 500 delegados representando mais de 200 organizações de 72 países e 5 continentes. Esta foi uma oportunidade para constatar como a falta de acesso à terra e o processo de marginalização dos camponeses alimentavam a pobreza, o êxodo rural e os fluxos migratórios. Na conclusão dos seus trabalhos, o FMRA afirmava que o objetivo comum da soberania alimentar é consistente com o acesso à terra e aos recursos naturais e que o reconhecimento dos direitos das populações rurais de todo o mundo é um pré-requisito.

Dois anos após o novo impulso dado pelo FMRA, a FAO e o Governo do Brasil organizaram, em 2006 em Porto Alegre (Brasil), a Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR). Os Estados presentes nesta conferência reafirmaram que a insegurança alimentar, a fome e a pobreza rural é em grande parte o resultado de uma falta de acesso aos recursos produtivos sofrida pela maioria dos agricultores de todo o mundo e destacaram o grande papel potencial da agricultura familiar, em geral, e das comunidades rurais tradicionais e grupos indígenas em particular, na promoção da segurança alimentar e no desenvolvimento sustentável para todos. Esta conferência concluiu os seus trabalhos alertando para a necessidade de reorientar as políticas de desenvolvimento para as populações mais vulneráveis, através do reforço dos seus direitos, tanto individuais como coletivos.

As mudanças que foram observadas no campo nos últimos dez anos, a nível mundial, estão longe das recomendações que foram feitas pelo FMRA e pela CIRADR. A situação tem mesmo vindo a piorar nos últimos anos, devido aos processos de aquisição / arrendamento de terras em larga escala por um pequeno número de agentes económicos.

Em anos recentes, as questões sobre os impactos sociais e políticos de projetos de investimento em grande escala e os riscos que representam para a segurança alimentar e o meio ambiente têm sido expressas em diversas ocasiões e por várias organizações. A falta de transparência nas transações de terras e a negação de formas locais de acesso e de utilização dos recursos de terra e água foram reconhecidos como fatores que favorecem a exclusão dos camponeses. O objetivo desses projetos, geralmente a exportação de produtos agrícolas, foi vinculado com os problemas de insegurança alimentar enfrentados pelas populações dos países anfitriões, especialmente quando a sua implementação exige, muitas vezes, a substituição de culturas alimentares por culturas destinadas à produção de agrocombustíveis. Finalmente, este tipo de projeto é muitas vezes baseado em sistemas de produção de monocultura e dependendo fortemente do uso massivo de energia fóssil, insumos de origem industrial e sementes transgénicas, representando risco de poluição dos solos e das águas e de diminuição da biodiversidade.

De um modo mais geral, as transformações contemporâneas da agricultura em muitas partes do mundo e o continuado crescimento da população foram acompanhados, por um lado, do empobrecimento de um grande número de agricultores e, por outro lado, da expulsão de milhões de pessoas do setor agrícola. Este fenómeno reflete o bloqueio do investimento e a profunda crise que enfrentam muitas regiões agrícolas. Esta verdadeira exclusão de centenas de milhões de agricultores, devido à falta de acesso adequado à terra, à água de irrigação e a outros insumos, alimenta atualmente um amplo processo de marginalização e de perda de dignidade, acarretando grandes desequilíbrios. Essa falta de garantia sobre o acesso à terra, à água, às pescas e às florestas, e o desenvolvimento paralelo de grandes projetos agroindustriais e florestais levam cada vez mais à expulsão de comunidades inteiras do local onde vivem e trabalham. Sabemos também que são precisamente estas áreas rurais pobres que concentram a maior parte das pessoas que sofrem de desnutrição no mundo. «O estado de insegurança alimentar no Mundo», elaborado pela FAO em 2013, destaca o número de 842 milhões de pessoas subnutridas, três quartos dos quais vivem em meios rurais.

As Nações Unidas declararam 2014 como o «Ano Internacional da Agricultura Familiar» chamando assim a colocar de volta este modelo no centro das políticas e investimentos agrícolas, reconhecendo as suas especificidades e capacidades para aumentar a produção de alimentos, preservando os ecossistemas, gerando emprego e reduzindo a pobreza. Num momento histórico em que estas políticas nunca foram tão ameaçadas em todo o planeta, esta decisão tem uma orientação clara e uma dimensão particular.
Muitas iniciativas têm sido tomadas neste sentido e o diálogo entre os governos nacionais, organizações da sociedade civil e organismos multilaterais pode ter sido reativado numa nova base, incluindo, em particular, a questão do direito à terra e aos recursos naturais. Uma das iniciativas mais significativas é a da Comissão de Segurança Alimentar (CSA), envolvendo, ao mesmo tempo, os Estados, as instituições internacionais e a sociedade civil, que, em 2012, adotou as “Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável da Posse da Terra, Pesca e Florestas no Contexto da Segurança Alimentar Nacional”. Após dois anos de negociação, essas orientações foram a expressão de um amplo consenso para promover a governança responsável da terra como uma resposta ao processo de açambarcamento. Reunido em Roma em 21 de fevereiro de 2014, o Fórum dos Agricultores pediu solenemente aos governos a implementação das decisões adotadas pela Conferência Internacional sobre a Reforma Agrária e o Desenvolvimento Rural (CIRADR, 2006) e pela CSA.